terça-feira, 31 de maio de 2011

ESCADA SEM DESCIDA

            Tem dias que esta escada fica comprida como uma cobra sinuosa e sem fim. São os dias que não quero chegar e abrir a porta para o silêncio que tem mil vozes. Teu riso ainda soa sentado na poltrona perto da janela onde te acomodavas para que a fumaça do cigarro não empesteasse tudo.
            O inverno veio trazendo este cinza confuso que às vezes se transforma em chuva, outras num frio de gelar meus ossos gelados de presenças.
             Minha atenção volta à escada com seus degraus molhados neste edifício esqueleto inexistente, onde ela cresce em espiral pelo lado de fora fazendo com que os respingos do céu se derramem  sobre ela. Tomara não chegue ao fim. Lá a porta, única diferente das demais, estará me esperando, verde luz num estranho arremedo de riso. Sarcástico? Ou esperançoso? Não sei o que significa este verde para mim, agora não sei mais.
            Parece que estive toda a vida aqui, subindo para um degrau onde não consigo identificar ascensão alguma. Os apartamentos fechados escondem os moradores, adivinho os soluços ouvidos pelas frestas e as risadas partilhadas no meu suspiro.
             Quantos degraus terá esta escada? Já subi sessenta e cinco, parece que isso não tem significado por que me sinto como se estivesse ainda no primeiro. Talvez se eu voltasse atrás... Descesse uns degraus... É impossível, os degraus abaixo sumiram, há apenas vácuo e escuro, algum olhar passageiro.
            A névoa do inverno neste dia que começa às 12 horas engole tudo. As luzes estão acesas apenas para a subida e temo cair no poço das lembranças que não vivem, apenas revivem formas estáticas. Não tenho certeza se vislumbro ou se saem de minha fértil imaginação encaracolada nos cachos de meus cabelos infantis. Eu tinha cachos? Parece que sempre foram escorridos e sem cor, como agora são.
            Subir a escada... Ou será que ela desce e me confundo nos pés que tropeçam? Não tem escada alguma apenas um corredor comprido cheio de portas fechadas? Ouço vozes soando no longe onde não posso entrar. Nem sei se quero o bulício cansativo das conversas que não dizem nada, soam como ecos de sombra fantasmagórica e sem vida onde habitam os homens zumbis. Passam através de mim que me sinto tão significativa e, no entanto, sou um deles sem sentido e sem objetivo. Vagando por esta escada que sobe e desce ou fica parada neste andar cheio de inverno.
            Entre dois andares o sol espia, tímido e sem força. Ele é o fantasma que me acompanha? Qual andar será este? O décimo oitavo? Duodécimo? Esqueci.
             Dou-me conta que é domingo, dormito sem pressa. Logo ali, aos pés da cama, a escada retorce os degraus, não sabe se vem, ou se vai, ainda.
            Alguma coisa arrebenta as nuvens, estoura os miolos, esvazia tua poltrona. A escada se lança em direção à cratera aberta no céu onde um anil impossível sorri satisfeito e gordo. As amarras que me prendiam à cama são fios tênues e se esgarçam soltando meus braços e não há nem um fiapo deles nos meus pensamentos distorcidos que criam depressão desconexa.
            A gaveta regurgita comprimidos anti stress, anti ansiedade, controladores de humor, de estupor, da puta que pariu a quatro que inventei adoecer apenas por que virasses anjo, fantasma, lúgubre aparição desperdiçada. Tenho dinheiro embaixo do colchão que enriqueceria vinte psiquiatras que me comem por uma perna, dando em troca um consolo transitório e masturbador.
            Logo volto à posição fetal que me é tão cara, nela posso choramingar e dizer ao mundo sobre o velho antro onde gosto de germinar minha impotência diante da solidão. Não venhas com este blá, blá, blá suado e rançoso de que preciso me levantar. Será que não vês como estou? Sou eternamente doente e maldita. Não, não quero mudar a vida, se ela ficar boa o que terei para reclamar? Já conheço o horror que é levantar e limpar casa para ninguém chegar, comida feita em casa fede , meu nariz é osfrésico e os cheiros me incomodam demais. O único que me embala e faz parte de meus poros, é o do cigarro aliviando a infelicidade que me reveste.
            Se me incomodo com escritos mesquinhos, nada passarinhos do Quintana? Nem fazem cócegas na minha disposição de atolar.
“A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê, já passaram-se 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado.”
            Baboseiras de poeta que morreu roendo as tábuas de seu quarto vazio. Carimbo: REPROVADO!
            Não perco hora alguma, aproveito todas para mergulhar, atleta olímpico de peso-chumbo amarrado no pé. Cinqueta anos? Rio-me de ti. Já tenho mais do que sessenta e estou aqui, incólume diante de minha escada sem volta.
            Te cansei? E eu com isso? Depressão é mesmo assim, arrastada e repetitiva. É tudo que me cerca e não és meu amigo, nem sequer sofreste por mim. Me ofendeste com esta conversa mole de transformar a vida. Meu nome está escrito com sangue no óstraco grego, para sempre banida dos dias azuis.
            Sai daqui! Deixa-me em paz e soturnamente feliz com a escada que justifica minha doce loucura. Um comprimido para dormir fará com que desapareças. Depois poderei voltar aos meus anjos salvadores que me ajudam a ficar amarrada nesta cama e me fornecem os meios para isso. Não, não quero procurar outro médico, este é meu número, não pergunta nada, não diz nada e me bate nas costas, compreensivo e carismático na nova receita que carrego na bolsa apertada, bem apertada ao peito que lateja vontade alguma.

                                                                                                          Vana Comissoli

             

terça-feira, 24 de maio de 2011

Só para ver como é possível...

BARATAS... ARGH!


            Alguma coisa muito estranha estava acontecendo. O cara chegou revolucionando tudo, a meu favor é bem verdade, mas ainda assim... Muito estranho.
            Ele sempre vinha e ela se derretia toda, era um bafafá nas panelas antes da chegada, cheiros de todos os tipos não muito deliciosos para meu refinado olfato, depois ficariam no ponto certo, suculentos e atrativos. Tenho que parar estas doces lembranças senão deixo o acontecido na metade.
            O caso é que o cara chegou e ela estava agitada desde cedo, mal entrou na cozinha e eu só na bituca, de leve. A noite prometia. Não me interessava o que ela fazia lá dentro, apesar dos ruídos estranhos, acho que mudava a roupa de cama por que um odor de lençol dormido subiu e logo veio aquele aroma de roupa limpa, um pouco enjoativo, tinha a mania doente de perfumar tudo. Não teve panelas para a janta se apresentar, nem sequer um ovo frito e eu especulando, sempre que ele vinha tinha comida a rodo.
            Ele chegou com cheiro de gripe logo confirmada pelos sons fanhosos que emitia e espirros, essas coisas de gripe que, graças a Deus, só conheço pela coriza e a ranheira. Nem tão más assim, tudo têm sua utilidade. Ela correu com cobertor nas mãos e já foi abraçando o sujeito, colocando a peça em cima dele e falando com voz de bebê, tadinho... tadinho... Fungava no pescoço dele e os olhos lacrimejavam, isso vi bem, coisa de mulherinha apaixonada que ainda não tem o fulano em casa até que a morte os separe. Nem falarei sobre o que acontece depois por que não gosto de desfazer fantasia de ninguém, não sou do tipo desmancha prazer embora desmanchem tanto os meus.
            Foram direto para o quarto, eu estava muito curiosa, então fui atrás para ver o que estava pegando. Ela puxou as cobertas e disse espera bebê, enquanto ligava o ferro de passar e esquentava o lugar onde ele deitaria. Ora vejam só o que faz uma mulher para pegar um trouxa, depois ai dele se não esquentar o lado dela antes de deitar. Enfim... Cada louco com sua mania. Eu não tinha estes hábitos medievais embora fosse de uma antiquíssima cultura, na hora do pega-enrola era bater e valer sem frescura.
            Ele fez um ar de quem está à morte e respondeu: “Claro, meu bem, só mesmo tu para cuidar de mim desta maneira carinhosa”. Tenho certeza que era uma frase prá lá de decorada e que ele já repetira tantas vezes quantas foram as mulheres que o deitaram na cama durante um resfriado mixuruca. Depois fez, ai, acho que tenho até febre. A divina dama saiu correndo e buscou o termômetro dando ordens de deita já.
            Eu topei o jogo e fiz a minha parte, fingi que acreditava e fiquei quieta no meu canto para não atrapalhar, queria era saber dos restos da janta que não tinha cara nenhuma que ia desencruar. Depois da encenação toda é que a moça foi para a cozinha e percebi que haveria movimentos sim.
            Abre geladeira, espirra na porta aberta, vai pegar a gripe, cata cebola e cenouras, mais umas batatas, afinal um pedaço de frango. Sou bem chegada em frango, gosto de raspar a carne dos ossos e a gordura fria tem um cheirinho inconfundível. Logo subiu a fervura da água e ela jogou para dentro tudo muito picadinho e ainda ouço o eco da faca roçando e cortando todos os ingredientes. Uma bela canja caprichada.
            Até gosto das cumbucas japonesas onde comem a sopa, ou canja, ou qualquer coisa com molho, elas são redondas e parecem um tobogã. Uma gracinha. Acertei, foi aí mesmo que ela serviu e levou para o homem refestelado nos travesseiros. Deu na boca, acredita? E ele esticando os lábios, soprando, tá quente? Deixa que eu assopro, não te esforça, tens que repousar. E beijinho na testa enquanto o próprio cenho está franzido, será que não vê que assim fica feia? Tem tanto trabalho e gasta um dinheirão comprando cremes e se espichando para ficar jovem e bonita, agora se espreme toda por causa de uma gripe que nem é sua?
            Gastaram um tempo enorme nesta cena, diferente dos outros dias que ele chegava, iam para a sala ouvir música, tomar drinques, enquanto tudo já estava pronto na cozinha. Ficavam para trás uns restos de queijo com seu trescalo maravilhoso, dava uma sobrinha bem boa que eu não rejeitava, eram franceses, eu gostava quando ela abria a mão e comprava aqueles bem fedorentos e cheios de bichos, ou bolor. Minha predileção, sou chique e viajada, conheço o que é bom. Aí se amassavam no sofá de tudo que era jeito, nunca frequentei academia de ginástica, mas devia ser bem parecido por que não é qualquer um que põe a perna lá em cima e daqui a pouco, numa revoada já está lá embaixo. Um entrevero para poucos. Às vezes eu até tentava contar, um,dois, um, dois, mas acelerava e eu perdia o ritmo por que não sou tão rápida, quando começava a acertar de novo, puft eles cansavam e se atiravam duros para traz.
Só depois disso, e demorava, acho que o mal educado até dormia, é que vinha a janta numa bandeja formosa, com vaso de flor e tudo. Ela teve a pachorra de comprar uns guardanapos importados caríssimos para o benzinho limpar a boca. Que exagero! Além de ser papel do mesmo jeito ainda tiravam o hálito das delícias que comia. Isso também não importa já que sobrava o bastante para mim, sou frugal, como pouco, uma questão de refinamento.
Davam risadinhas e se diziam coisas ridículas para pessoas deste tamanho: Benzuquinha, fofuxo, te amooooo. Tudo isso para se deitarem na cama de verdade, fazer mais daquela ginástica exagerada desta vez com posições mais esdrúxulas ainda e não se sabia quem era quem ou quem estava em cima ou embaixo, se de frente ou de costa. Não sei o que acham de fofura se depois roncam e até peidam no silêncio da noite que tudo ouve.
Estou contando isso para verem que estava muito diferente nesta noite, não é exagero meu.
Tomaram a tal sopa que ele achou o máximo e não devia ser tanto assim porque ela nem tocou nos temperos sensacionais que usava nas outrasvezes. O que salvava era o cheiro do frango, gosto dele na sopa, a pele fica molenga, uma delícia.
Ela foi para o banho, não sem antes dar mil recomendações que ele não se levantasse e qualquer coisa que ela seria rápida e, por favor, esperasse sua volta. Homem é teimoso, todo mundo sabe disso, doente então... Deus nos acuda, fica uma praga, vira criança, parece que é para encompridar a doença e receber mais destes nhéins nhéins todos, mal sabem eles que mais de um dia enche a paciência e elas já vão dizer deixa de frescura, seu verme fiasquento. Vai ver é exagero meu por que isso eles quase nunca ouvem, só depois de muito tempo, elas são espertas e só dizem para dentro, eu tenho ouvido bom e ouço o xingamento bem direitinho pelo modo como batem as gavetas da coitada da pia que não tem culpa alguma das gripes que vicejam por esta cidade cheia de vírus.
Ele levantou, sei lá o que queria o birrento, foi para a cozinha e escandalizou. “Ai, minha santa, uma baratona nojenta em cima dos pratos, eu que não mato este bicho que sairá aquela gosma branca asquerosa”.  Se mandou de volta para o quarto gritando como se estivesse sendo esfaqueado: - Berê, Berê, uma puta barata na cozinha!
Ela saiu do banho pingando água por todo canto e acudindo, que foi benzinho, que foi?
- Uma barata nos pratos, morro de nojo!
- Nojo de barata? Que história é essa? E saiu correndo? Não acredito! Por que não deste uma chinelada?
Eu me enfiei bem ligeiro no meu buraco favorito por que odeio a palavra chinelo e todos seus derivados. Só fiquei ali, espichada nas antenas para ver se tinha que buscar outro porto seguro, rezando para não precisar, era afeiçoada à casa e não gosto de me mudar, não sou caracol que vive prá lá e prá cá com a casa nas costas. A Berê era ecológica, no que eu concordo com ela, nada de Rodox, ou fumacê de Jimo que tão mal faz a saúde.
Não tenho nada a ver com isso, não foi culpa minha, só sei dizer que a tal paixão esfriou com esse medo boboca de barata que nem gosta de gente e não uiva como os chatos dos cães que ainda por cima tem que levar todas as noites à passear. Muito menos faz como os terríveis gatos, caçadores de qualquer coisa que se mexa e dedos duros também, revelando o lar da gente miando como uns condenados.
Só sei que estragou a academia e o fofuxo foi espaçando as visitas já que não tinha mais queijo importado e às vezes, quando chegava ela estava com a cara toda melecada de creme e só estendia a beiçola em bico para um selinho distante ou distanciador que era como a  fofura do meu coração desejava de homem que não gosta de barata. Esta é das minhas!