quarta-feira, 22 de junho de 2011

MACHO MACHO MAN


Gostamos de execrar os grandes, seja indivíduo ou estado. Não é assim que os doloridos de cotovelos fazem? Ah, gentinha descornada que está sempre a olhar o rabo do pavão alheio enquanto banca de peru gorgolejando glu-glus repetitivos e risíveis.             É assim... Desviar a atenção ou acautelar-se antes que as metralhadoras se voltem para peitos com quilômetros de ficha corrida ainda sob o tapete lavado a Pinho Sol diário.
            Políticos americanos atléticos e bonitões foram “pinçados” enviando fotos para senhorinhas disponíveis e loucas para acreditar que o gatão era livre, leve e solto além de ilustre desconhecido e não manjado pelos repórteres de plantão. Os hakers bisbilhotaram e acharam pratos quentes na bandeja, puseram a boca no mouse, digo, as fotos na Internet, a mais democrática das instituições. Teve renúncia, mea culpa e contrição diante de mulher grávida. Para salvar o pobrezinho rico, afinal era bem apanhado, se não tivesse dado esse quebra pau poderia até pedir “emprestada” a foto dele, pensei: tem mulher que é foda, fica grávida e fecha as pernas, dá merda!  
            Se a morada virtual das delícias pesca até político americano que considero acima de todos os males e macumbas (vai ver penso que EUA é parecido com o Brasil. Ha, ha, ha...). O que não aconteceria com a raia miúda? O pavor bateu geral. Quantas cabeças mal casadas, ou nem tanto, dão uma “voltinha” para estimular? Quem não sabe que funciona? Se tiver que contar esta história da Carochinha de ser desgraçado, cheio de filho que não pode abandonar, para render horrores de bucetinhas ajoelhadas no altar fálico, a gente enfrenta.
            Começou uma troca de email que ultrapassou em adesões todas as correntes do Buda do dinheiro, Anjo da felicidade e de todos os Santos, urgentes ou não. Falei até com chinês, não me pergunta como, mas no desespero a gente entende aramaico. A coisa foi se fundamentando, o pavor crescendo, casamento desmaiando, senhorinhas se enforcando, sei lá mais o que.
            Aí explodiu aquela revolta dos bombeiros no Rio de janeiro, 2000 homens, machos prá caramba, se uniram na força da cara e da coragem e foram às ruas, com ídolo do surf e tudo. Deu prisão para um pacote de caras, logo foram libertados. Se esta causa nobre e restrita tinha perdão, notícia em revista, apoio e aclamação, imagina uma causa mundial, alinhavada pela Internet e muito mais justa, até a FTP daria a maior força.
            A banda larga, curta, discada ou não, e toda a parafernália comunicativa à mão congestionou. Os relógios fugiram de Greenwich, os despertadores criaram a super hora universal, até os Ets devem ter observado o levante e se interessado. Não vem me dizer que extra terrestre não dá umas puladas de muro que nisso não acredito. Macho é macho em qualquer sistema solar. O Deus não é infinito? Então fez tudo igualzinho, só pequenas diferenças verdes e amarelas, mais nada.
            Só não fez notícia retumbante por que tinha repórter, diretor de mídia e até faxineiro de estúdio interessadíssimo no processo e tinha que ser segredo bem guardado senão estragava a eficácia do levante.
            Começaram a azeitar as engrenagens com centenas das mais cultas, intelectuais e até científicas cabeças do planeta.
            Um feriado sensacional onde tudo pára é o Natal, lançou um cuiabano de nó virado. Claro que não, berrou um italiano circense, e os muçulmanos, judeus, budistas? Vamos deixar os irmãos de fora? Corta essa foi a sonora indignação do moscovita.
            No meio da dificuldade de acertos um nordestino arretado, de dedo em riste, este tinha dedo, distribuiu buchada de bode no mundo inteiro. Os moçambicanos adoraram, fazia tempo que não viam uma farra de carne, nem aí se era de bode, vaca ou peru assado. Deu problema, cada um almoçava num horário diferente e a sesta dos gaúchos, mexicanos e afins atrasou os trabalhos. Ficou acertado que não haveria mais acepipes. Só discretos drinques. Discretos, nada de encher a cara que vão dormir no meio dos acertos os do litro e meio. Vieram apupos de todo o lado, de norte a sul, leste e oeste, mas acabaram aceitando em prol da causa.
            Em consenso o dia da reivindicação seria 31 de dezembro, e desta vez bateria meia noite no mesmo instante em todo o planetinha. Nada de exclusividade, a chamada à ordem seria geral, quem se insurgisse teria sua foto peladão, a verdadeira, colocada internacionalmente (o internacional foi pequeno deslize, acontece...) na Internet.
            Bandeiras foram criadas em preto e branco com um gavião explodindo energia no meio. Artistas plásticos doaram suas criações. Foram tantas que se resolveu fazer várias bandeiras e com isso muitas alas foram criadas: dos machões, dos disfarçados de empresários, dos garis, dos cheios da grana. Muitas especializações. Os mafiosos relutaram em ter uma ala, afinal mostrar a cara não era seu estilo.
            Um marqueteiro disse que sem slogan não funcionaria. Problemasso! Até prêmios Nobel entraram no páreo nessa hora. Mais difícil que escolher os “fardões” da Academia Brasileira de Letras. Lapso, esta escolha é fácil, basta ter um QI esquentado por indicações da pesada, gostar de se fantasiar de palhaço e ser chegado em marimbondos de fogo.
            Por unanimidade resolveram que deveria ser muito simples. Não eram machos? Macho bastava. Não houve consenso, muito fraca. Lá dos perdidos ventosos da Patagônia, escondida atrás de outras, veio a voz: Dava para ser Macho, macho, man? Acharam “A sacada”. A música homônima passou batido, nem se lembraram dos machos que a rebolavam. Deixa quieto!
            A vestimenta seria ao gosto do participante, escolher daria muito pano para manga e em alguns pontos do planeta, faltaria pano, todo mundo sabe, inverno aqui, verão lá. Única exigência é que os escoceses abrissem mão do kilt e os mulçumanos dos vestidões, todo mundo de calça comprida, de macho. Lembraram da roupa que serve a rico e a pobre, de direita, de esquerda e do centro: o jeans. Aplauso geral. Todo mundo de jeans e camisa branca. Branco não, gritou Ling Ching Ling, é cor de luto. Ai, cada passo um impasse, ou cada impasse um passo? Só se fosse para trás. Essa torre de babel é de desgovernar os miolos. Cada um com a camisa que quiser, desde que não tenha desenhos, mangas bufantes ou foto de homem no peito, a sua própria pode.
            Afinal, depois de muito é, mas não é, chegou o dia. Já se tinham passado 2 anos, as paqueras estavam frias, as infidelidades discretíssimas e as mulheres desesperadas. As esposas cansadas de tanto dar e as amantes cansadas de não ter para quem dar. A ordem yang-ying do avesso. Haja filosofia para explicar este entre aspas depois! Tremendo trabalho para machos pensantes.
            As badaladas do relógio foram contadas no ritmo certo e a mulherada sem entender coisa nenhuma, o peru nem tinha ido para o forno, as calcinhas brancas estavam secando no varal e a homarada toda na rua soltando foguete? O que é isso?
            Rio de Janeiro, Tremembé das Almas, Calgary, Cartagena, Glasgow e todas as cidades, conhecidas, desconhecidas, as que se ouve falar muito, as nem tanto, as que nunca se viu no mapa. Em todas, lá estavam os homens com estandartes, palavras de ordem, gritaria, coisa de macho, desfilando pelas ruas, estradas, vielas, campos, planícies geladas, altas montanhas, precipícios e qualquer buraco que exista.
            Foi um Deus nos acuda, o levante desta vez foi sensacional, não houve uma só desistência, teve pai que levou bebê de colo, claro que macho. Todo tipo de veículo de carrão até riquichá. Um fato que se tornaria épico.
            No calor da hora, fosse inverno ou verão de torrar, os fantásticos se pelaram e aí, sabe-se lá como, já que nenhum macho, masculino homem estava diante do computador, a notícia se espalhou e foi roupa voando para todo lado.
            Os machos, mas nem tanto, que não tinham participado da estruturação do evento ficaram doidinhos, quiseram passar a mão, dar uma pegadinha. Foi reação total, nada disso, só podia olhar. Alguns até ficaram entristecidos, sabe como é... Na hora de um aperto...
            O sucesso se mostrava estrondoso e os machões já visualizavam a tonelada de emails que receberiam, mulher para escolher, até a Débora Secco chamaria a surfistinha de rol pequeno. Os que se entusiasmavam muito batiam continência, mostravam serviço. Ninguém se incomodou, afinal macho é para isso mesmo. Ficaram orgulhosos dos de sangue quente.
            No meio da euforia generalizada, uma mulher pequena, meio e meio, meio quilo, com cara de todo dia, saiu da assistência com rolo da massa na mão. As outras, de olhos puxados, cabeleira carapinha ou loira escorrida, viram aquilo e...
            Não saiu notícia no jornal, os tvs ficaram caladinhas, nem pé de página teve.
            As mulheres não fizeram levante, não mostraram a bunda, nem reviraram os olhos. Pra que se tinham a única coisa que dobra homem?
            Por décadas a Internet teve a mais fiel comunicação inimaginável.
           

           

           

quarta-feira, 15 de junho de 2011

O RIDÍCULO ESPELHO


O RIDÍCULO ESPELHO


hoje, o espelho é o monitor...
onde nos vemos e procuramos o outro.
-Inácio Carreira-


                Como são ridículas as histórias de espelho, velhas e mofadas. Lembro-me de Caio Fernando Abreu e seus Morangos Mofados, da bruxa da Branca de Neve, O Espelho Não Mente, Através do Espelho e por aí vai espelhando gente que a última coisa que faz é olhar para si mesma, precisa desse reflexo sem nexo. Até eu já fiz contos com espelho. Vira, mexe e lá está ele: O Fatal.
            Clarice pensava isso de forma nem um pouco clara, afinal estava na frente do espelho e não gostava do que espelhava: cara cansada, olhar de ontem, a cabeça numa rotação de 180º. Bom olhar as costas, nela se refugiavam as marcas do acontecido sem as linhas do desassossego, dos vasos quebrados e dos achados e perdidos. Podia pensar que eram apenas costas, nada mais. Coisas simples fazem falta, aliviam os estrovengos, berrantes pensamentos.
            Espelhos não falam, não tem boca azucrinando. Era bom não ter retruques te dizendo quanto és torta e tua escolha é atravessada. Por outro lado os sons caninos eram os únicos que acompanhavam seus dias. De vez em quando precisava do silencio do espelho, pelo menos podia fantasiar que ela era outra, nunca “a” outra. Dessas queria distância, já apanhara o bastante nesta estrada de mão única+.
            Digam o que quiserem, mas viver sozinho pode ser uma barra pesada muitas e muitas vezes. A verdade que é tudo igual: viver numa república ou no “só eu”, vezes ótimas e vezes chatas, outras revezes. O certo mesmo é que moramos com o que houver dentro do espelho. Não pensaria espelho da alma nem morta, muito menos teus olhos são espelho e outras babaquices desse tipo.
            Espelho não passa de um revestimento refletor de baixa transmissividade, sobre o substrato e uma camada opacificante, a qual é disposta sobre o substrato de vidro. Copiado da Internet, não dá para entender nada, espelho é essa coisa simples para a gente se ver e complicadíssimo em palavras, portanto não adianta inventar coisas extra sensoriais, só veremos dois olhos (se não for caolho), um nariz e uma boca, bonitos ou não, ou depende do dia e do humor.
            Pera aí... Fácil de um lado... Complicado por outro... Isso me soa conhecido, tal qual imagem refletida. Melhor não viajar, espelho do outro lado não é espelho. E acabou.
            Foi nesse momento que o computador quieto se manifestou. O MSN soou alto e claro num apelo inescapável. Quem seria? Tomara fosse o milagre. Correu.
            A tarja alaranjada piscando, lembrava luzes do além. Abriu a janela e a mensagem do amigo distante falava de saudades e pedia notícias. Sentou-se e dá-lhe papo. Coisas bobas, invencionices que se pode por no PC sem que ninguém se incomode muito, afinal, fosse quem fosse, não podia ver-lhe a cara amassada, as olheiras invadindo o rosto e nem suspeitar da noite rola enrola que tinha tido.
            Gente era tão bom! Falar mesmo abobrinhas era a coisa mais calorosa que encontrava nos dias espectrais. Depois chamou um e outro, foi se aquecendo, o espelho desmaiando, declarou seu amor ao Facebook, cantou a plenos pulmões com o Youtube, bateu grandes papos num chat. Enviou recados para conhecidos desconhecidos através de várias comunidades.
            Teve as respostas esperadas, outras nem tanto, os desesperados estavam a postos frente à telinha e garantiam a corrente de sons imaginários. Olhou fotografias no Google como se tivessem enviado para ela, ou se ela mesma fotografasse. O mundo encheu-se de vozes e vai-vem, luzes, sons, compartilhamento. Quase se esqueceu de almoçar, lembrou por que a amiga avisou que ficariaoff, a família devia estar à mesa.
            Foi cantarolando ver se haveria algo surpreendente na geladeira. Batatas pré-fritas, ou hambúrguer congelado. No caminho passou pelo espelho, pôs a língua para ele como criança birrenta.
            - Estás vendo, doutor ridículo, não preciso de ti.
            Não se viu de costas, a cabeça estava no lugar, portanto não podia perceber a contração dos músculos que acompanhou seu desaforo.


                                                                                                                              Vana Comissoli



segunda-feira, 13 de junho de 2011

CRIAÇÃO

            Acho que os textos que são cozidos em fogo lento pelo inconsciente são sempre os melhores e os mais fortes. É aquele permitimos sem o olhar oblíquo do consciente, trabalho melhor assim, sempre. Não há magia no inconsciente, tudo é fruto do recolhido pelo subliminar, do observado nas frestas das relações, nas fissuras deixadas naquilo que pensamos sedimentado ou matriz. Nada vale mais que a flor do Ipê, rápida, fugaz, resultado do curtido nas entranhas das raízes e dos caules - depois, fica a imagem e o prazer, não há luto nunca quando de seu desaparecimento, sabemos que ela retorna. Criação é isso...”

Carlos Pessoa Rosa

domingo, 12 de junho de 2011

DESAFIO DA SEMANA

hoje, o espelho é o monitor...
onde nos vemos e procuramos o outro.
Bola de cristal, lâmpada de Aladim, espelho de Narciso.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

BAL MASQUÈ

                                                
Assustei-me com a luz, enchendo o ar de cor sanguinolenta. Era para ser um momento divertido: uma festa, um baile de máscaras. No entanto, me achava em meio ao caos e a um útero confuso e premente.
            Minha namorada olhou-me sorrindo, adorando a apoteose colorida que atravessava a vermelhidão. Como poderia ela estar assim, rosada e leve no meio deste pandemônio enquanto estrangulada na fala pelo volume de um som uivante como berros de pavor?
            - Querido, olha que lindas fantasias! Todos vieram mesmo fantasiados! – Passava a mão sobre seus próprios paetês e eu senti o gelo ardido e queimante de minha alma.
            Sim, eram muitas fantasias, algumas eu jamais vira. Colombinas e pierrôs seriam as esperadas, até algum lobisomem não me causaria pavor, mas estas... Prostitutas, alquimistas, mendigos, doutores, palestrantes, honoráveis, mágicos, juizes, farmacêuticos. Uma perdida dona de casa cheia de panelas e rancores. Um menino abobalhado e de olhar vago me acenou molemente. Depois um homem-leão e centauros, bailarinos e malabaristas.
            Os homens empoados, vestidos de togas magistrais, outros atrás de longos jalecos brancos manchados de pus e suor. Essas eram aparições de pesadelo.
            Não sou bom em música, não conheço ritmo, nem a última voga. No entanto, essa melodia cacofônica nem para mim parecia música. Eram urros e vagidos misturados com palavras grandiloquentes, ao fundo talvez eu pudesse (se conseguisse prestar atenção, ou assim me parecia) ouvir o Bolero de Ravel.
            Mas como prestar atenção no meio deste circo de loucos? Palavras em línguas desconhecidas e gente se batendo. O salão estava lotado, alguns já sentavam nas janelas baixas e eu começava a sufocar em meio ao ar saturado. As pessoas não se importavam de atropelar umas às outras e já tinham os pés pisados, assim como eu.
            Tinha perdido minha namorada de vista. Procurei-a na ponta dos pés, seria fácil ver de longe sua peruca século VX. Um toque de dedos nas costas me fez virar num susto: Astréia, minha acompanhante sorria, vestida de libertária. Meu Deus, de onde tiraste esta fantasia? E a Maria Antonieta, cadê? Perguntei incrédulo.
            Ela ria.
            - Que estás dizendo? Eu vim com essa! E com muitas outras.
            Minha cabeça sucumbiu. Procurei o belo traje a rigor que eu vestira com esmero. De onde surgiu essa roupa de surfista, igual a minha que uso apenas nos domingos e ninguém sabe, fora meus parceiros de hobby? Não estou maluco, vim de traje alta gala!
            Ou estou maluco? Perturbado? Ainda não bebi nada! Drogado? Nem me drogo! Ou me drogo e não sei? O QUE ESTÁ ACONTECENDO??? Preciso sair deste lugar de doidos porque estou ficando um deles.
            Um jovem rapaz displicentemente vestido passou por mim com os livros debaixo do braço e falando alto a matéria de minha aula de ontem. Não acreditei, ele usava uma máscara que era a minha cara!
            Entrei num possível redemoinho e as pessoas giravam também. Imaginei que fosse outra dessas engenhocas de discoteca e que deveria haver um sistema carrossel por baixo do chão.
            Tudo foi se retorcendo e minha Astréia, com seu nome que só uma mãe doida pode colocar na filha, virou uma grande medusa. Cada cabeça com um penteado diferente e principalmente um olhar com enfoque diverso. Olhar tem enfoque? E Medusa não é apenas um corpo com um monte de cabeças? Como cabem tantos corpos nessas cabeças, se não posso vê-los e posso?
            Meu pescoço girava em cima de minha própria cabeça e tinha a impressão que as veias proliferavam junto com tendões e nervos dentro de mim criando ramificações geradoras de novas cabeças. Todas minhas e não minhas. Eu estava em todas e ao mesmo tempo não estava.
 Estava grudado no teto observando e não me achando nem um pouco louco. Sentindo-me adequado dentro de cada um de meus corpos que eram e não eram. As pessoas me olhavam com seus múltiplos corpos sorrindo e gratificadas pelos toques que nos dávamos, gentis ou argutos, que colocavam detalhes no olhar e na postura, enquanto meu corpo no teto engordava sem engordar com tudo isso.
            Tentei chamar Astréia quando passou por mim vestida de enfermeira, mas ela nem me olhou. Conversava muito compenetrada com um cara que só podia ser médico, mas que eu conhecia da praia e não podia reconhecê-lo agora. Nunca visitara minha namorada na faculdade de Enfermagem que cursava e o Otto, enquanto a gente surfava juntos, me disse que era professor dela e está tudo se misturando e se desmisturando.
            Sei que não estou louco porque lembro que meu nome é Flávio e estudo Direito, adoro surfar. Mês passado minha irmã casou e tive que usar o traje de gala que achava ridículo, no entanto acabei gostando tanto por causa dos elogios que recebi e me senti realmente um gentil-homem a ponto de vir com ele. Ou será que ainda irei a um baile de máscaras?
            Nesse momento, lá embaixo, naquele meu eu múltiplo, surgiu mais um corpo e estava vestido de cozinheiro fazendo as mesmas panquecas deliciosas que faço me sentindo como um mestre cuca. Minha mãe me deu um chapéu de chef igual aquele que usa e fico um barato com ele. Sinto que um pedaço de mim gosta mesmo de cozinhar e me prometo fazer um curso para aprender mais de alhos e bugalhos.
            E de repente tudo se encaixou e subi um pouco além do teto ficando completamente à vontade no grande céu, onde moram os deuses que me acenam em reconhecimento e sinto que sou um deles embora não entenda por que.
            Encaixou-se porque sou um pouco de tudo aquilo lá embaixo e estou observando que Sou num momento-espaço diferente para cada um. Uma bela ninfa se aproxima com uma cornucópia transbordando bênçãos e entendo que está certo que eu receba este prêmio já que pude ver este baile de máscaras sem me revoltar e nem enlouquecer, como já fizeram muitos que brigaram por uma identidade única e irreal.
            Sou múltiplo e sou total e as moedas da cornucópia me enriquecem com minhas incontáveis faces, todas verdadeiras porque por trás delas afinal sou Eu que estou inteiro. Minha inteireza subjacente de minha multiplicação, matemática que não é comprovável, mas que bate no ritmo de meu coração humano.
            Desço do espaço sabendo que Mercúrio deve estar rindo num canto ao me ver com a caneta na mão, pronto a contar esta história nos sites literários que participo e já sinto minha identidade escritor brotando, primeiro na ponta dos dedos já meio quadrados de bater nas teclas e fico imensamente feliz. Agrego meu mais um e procuro minha doce namorada Astréia, achando que tem o nome mais perfeito de todos e ainda bem que não é uma constelação do céu da noite, mas é uma constelação de carne e osso que posso beijar.




                                                                                              Vana Comissoli

domingo, 5 de junho de 2011

MOÇAMBIQUE A PIQUE


                                                                                              “Nem isto guerra nenhuma não é.
                                                                                                                       Isto é alguma coisa que não tem nome.”
                                                                                                                                             - Mia Couto –

                Uma atrás da outra as tribos se destribam, vilarejozinhos que já eram desde os tempos dos colonizadores. Neste tempo ser preto em terra de preto se tornara estrangeirismo, embora se grandes de bolso virassem quase brancos assentados ao lado deles.
            Ficava no esquecido o tempo em que os chefes se preocupavam com os tribais, muito mais os desvalidos, como agora quase todos eram desvalidos mais valia se valer e não se preocupar fora de si mesmo.
            Foi triste estar a andejo no berço de nascimento como menino nascido torto que se mata para não sofrer. Sofrer só há, jeito outro não tinha, então se vai andando terra sobre terra olhando de mau olhado estradas que se cortam, tanto de trajeto quanto de tiro. Se os cruzantes são irmãos já não se sabe mais, andarilhos todos de sacolejo e saco andante, a pele segurando os ossos para não se espalharem no chão. Se a peleja der tiro distraído acertando perna ou braço que encompridou para traz, há que se deixar o osso órfão e seguir carregando o que sobrou.
            Não havia modo de se querer ficar na casinha de muitas vidas antes da sua, cheia de marcas debruçadas no tempo espiando para ver se os moços seguiam a trilha marcada pelo compasso dos que já foram para o mundo dos orixás que aqui não há, mas em algum lugar deve ter.
            A cortina das lágrimas não se fechou impedindo adeus e nem se foi de costas, assim anda espírito que não sabe olhar para frente na adivinhação do que virá. Antonino, de nome branco, não o sabia também, talvez se continuasse Mwangaza teria mais tino. Enterrara este chamado junto ao último pé de milho que se finou torrado pelo o sol, que cor não tinha na sombra da fumaça das queimadas vestidas de soldado nem se sabe de que exército, uma vez tantos e muitos.
            Estradas foram tantas que de tantas já esquecera até o dia que achando tudo igual lhe pareceu diferente. Talvez o cheiro do ar, as cores... as falas que nem sempre entendia. Já pensara que terra de negros nascidos todos iguais eram, embora as histórias que  contavam as bocas antigas dissessem que não era assim e haviam de sobejo, muitos de diferentes terras todas negras, mas sempre diferentes na negritude da cor. Que no negro se guardam muitos negros e muitos jeitos de ser cor, mas cor não sendo.
            O caminhar já fora tão largo que se perdera do rio que lhe conhecia. O sol era aquele mesmo que chorara cinzas nos dias espaçosos de guerra, mas tinha uma olhada diferente, meio arrevesado como se ali ele não fosse de seu conhecimento.
            Nem sabia bem como atravessara tantos sítios já que a fome punha fraqueza nas pernas e o estômago ao contrário, desiludira de comer e só pouco, do tamanho de criança recém nascida era o que aguentava sem revoltar-se. Se acostumara. Tudo que se enfia no colar dos dias acostumado vai ficando, igual cachorro sem casa: vai chegando e vai ficando quase sem ir atrás de cheiro algum. Todos os cheiros se acostumaram ao focinho, novidade nenhuma que o faça levantar existe na terra batida e vermelhenta não se sabe do quê. Pelo menos assim lhe parecia ao ver tanto cão acoitado nas patas sem vontade nenhuma, os ossos querendo furar a pele que, de teimosa, não deixava.
            Agora estava ali sentindo esses bafios que entravam estranhos nariz a dentro. Se chegou na coragem e perguntou que terra final era aquela e de que lado do rio ficava. O respondedor estava com jeito de ter osso, pele e carnes por dentro talvez por isso tenha enviesado os olhos e levantado as mão como quem diz: Me sai cada doido das estradas de chegada e só eu tem para paciência tão grande de responde de novo e de novo que mudaram de terra e essa Moçambique já não é.
            Antonino foi levado pelo gesto a ir atrás de cidadão com facilidade de achego no peito e sentou-se bem feliz quando viu que era uma gamela de sopa que lhe estendia o respondedor sem trabalho algum de dar resposta. Tem coisas que se entende assim, sem fala, está no distante do pensamento a resposta e ela vai subindo, vai subindo até que se vê que de tudo já se sabia.
            Só escutou, de barriga aguentada da sopa, que seguindo em frente em algum lugar chegaria. Tem chegada um coisa tão sem jeito de gente? Nem sabia mais, há tempos esquecera que raça de bicho era, o dos humanos não devia ser uma vez escorraçado de todos os lugares. Obediência se aprende no ligeiro da ordem que se desobedecida pode custar perna, ou braço, quem sabe lá até a capacidade de ficar firme nesta vida sem Deus.
            Foi se indo até ver que a estrada tinham muitos que iam para o tal lugar que não chegava nunca, encompridado se encompridando. Desta vez nem reclamou, ou só clamou aos céus um baixar de vistas sobre ele, estava indo de bom grado por que de tempos em tempos, alguém com aquele sinal de feliz na testa esticava gamela de sopa. Pensava entre seus miolos que eram muito bons dando este manjar tão caro e raro, já vira muita faca e até facão ser arvorado à luta e bater no pescoço do de mãos estendidas num castigo bem certo por pedir o que não se deve.
            Fosse lá onde fosse este lugar na certa era dos bons, haveria trabalho pela troca da gamela cheia o que de certo era um salário muito bem assalariado para tempos tão malignos. E continuou indo até a lusa se derreter no mar e o sol de lá nascer para provar a todos que ele não morria como os miúdos apavorados ou famintos, que é tudo a mesma coisa e da mesma fonte. O pavor vem da fome e a fome dá um pavor que se desapavora depois do costume imposto.
            Nas pernas cansadas do cansaço, nos braços exaurido de abraços, a mente que pensa o despensado, este sul não chega nunca. Nem sabe se chegar é o destino, no Ori nada estava assim planejado. Parece que nesses tempos de guerra não há destino escrito, tudo está por se escrever através dos passos descompassados e do sul que não se sabe onde fica. Sendo o norte o melhor carreiro da vida desde tempos antanho, na fala dos velhos que não se achegam mais para repartir sabedoria acrescentada pela própria caminhada reescrita de jeitos perdidos, nos tiros que acertam corpos já caídos.
            Aqui as carnes começam a engordar e mulheres de beleza que fazem sonhar aconchego, restos da idéia de família, delícias esquecidas dentro do esquecimento que se quer ter, mas ressuscitam, de tão escondidos não estavam tanto. Os perfumes que balançam em redes nas nuvens balançando no céu que é azul de tão azul que sim, são do sul.
            Tu existirás, Esperança? Tua saia de flores e folhas de novo me dará sombra?
            Parece que a boca reaprendeu a sorrir, os pés a quase correr e os braços a se levantar em direção ao Ori que se faz ao caminhar. O rugir das grandes águas começam a falar de longe que de tão longe demorou a chegar, mas já despertam o nariz para cheiros cheios de peixe bons de comer, nos barcos a balançar. É barqueiro de pesca, caçador do mar, seus instintos agora sabem para onde ir, onde chegar que a chegada afinal despontou.

            As favelas isoladas, pelo povo sulista abandonadas se enfileiram junto aos parreirais de doces uvas que palpitam nos vinhos sul africanos. Os fugidos da guerra, sem lenço e sem documento esperam o dia em que o norte puder buscá-los. Caminhar e caminhar para casa outra vez, sentido contrário do encontro que não se encontra nunca.