quinta-feira, 9 de junho de 2011

BAL MASQUÈ

                                                
Assustei-me com a luz, enchendo o ar de cor sanguinolenta. Era para ser um momento divertido: uma festa, um baile de máscaras. No entanto, me achava em meio ao caos e a um útero confuso e premente.
            Minha namorada olhou-me sorrindo, adorando a apoteose colorida que atravessava a vermelhidão. Como poderia ela estar assim, rosada e leve no meio deste pandemônio enquanto estrangulada na fala pelo volume de um som uivante como berros de pavor?
            - Querido, olha que lindas fantasias! Todos vieram mesmo fantasiados! – Passava a mão sobre seus próprios paetês e eu senti o gelo ardido e queimante de minha alma.
            Sim, eram muitas fantasias, algumas eu jamais vira. Colombinas e pierrôs seriam as esperadas, até algum lobisomem não me causaria pavor, mas estas... Prostitutas, alquimistas, mendigos, doutores, palestrantes, honoráveis, mágicos, juizes, farmacêuticos. Uma perdida dona de casa cheia de panelas e rancores. Um menino abobalhado e de olhar vago me acenou molemente. Depois um homem-leão e centauros, bailarinos e malabaristas.
            Os homens empoados, vestidos de togas magistrais, outros atrás de longos jalecos brancos manchados de pus e suor. Essas eram aparições de pesadelo.
            Não sou bom em música, não conheço ritmo, nem a última voga. No entanto, essa melodia cacofônica nem para mim parecia música. Eram urros e vagidos misturados com palavras grandiloquentes, ao fundo talvez eu pudesse (se conseguisse prestar atenção, ou assim me parecia) ouvir o Bolero de Ravel.
            Mas como prestar atenção no meio deste circo de loucos? Palavras em línguas desconhecidas e gente se batendo. O salão estava lotado, alguns já sentavam nas janelas baixas e eu começava a sufocar em meio ao ar saturado. As pessoas não se importavam de atropelar umas às outras e já tinham os pés pisados, assim como eu.
            Tinha perdido minha namorada de vista. Procurei-a na ponta dos pés, seria fácil ver de longe sua peruca século VX. Um toque de dedos nas costas me fez virar num susto: Astréia, minha acompanhante sorria, vestida de libertária. Meu Deus, de onde tiraste esta fantasia? E a Maria Antonieta, cadê? Perguntei incrédulo.
            Ela ria.
            - Que estás dizendo? Eu vim com essa! E com muitas outras.
            Minha cabeça sucumbiu. Procurei o belo traje a rigor que eu vestira com esmero. De onde surgiu essa roupa de surfista, igual a minha que uso apenas nos domingos e ninguém sabe, fora meus parceiros de hobby? Não estou maluco, vim de traje alta gala!
            Ou estou maluco? Perturbado? Ainda não bebi nada! Drogado? Nem me drogo! Ou me drogo e não sei? O QUE ESTÁ ACONTECENDO??? Preciso sair deste lugar de doidos porque estou ficando um deles.
            Um jovem rapaz displicentemente vestido passou por mim com os livros debaixo do braço e falando alto a matéria de minha aula de ontem. Não acreditei, ele usava uma máscara que era a minha cara!
            Entrei num possível redemoinho e as pessoas giravam também. Imaginei que fosse outra dessas engenhocas de discoteca e que deveria haver um sistema carrossel por baixo do chão.
            Tudo foi se retorcendo e minha Astréia, com seu nome que só uma mãe doida pode colocar na filha, virou uma grande medusa. Cada cabeça com um penteado diferente e principalmente um olhar com enfoque diverso. Olhar tem enfoque? E Medusa não é apenas um corpo com um monte de cabeças? Como cabem tantos corpos nessas cabeças, se não posso vê-los e posso?
            Meu pescoço girava em cima de minha própria cabeça e tinha a impressão que as veias proliferavam junto com tendões e nervos dentro de mim criando ramificações geradoras de novas cabeças. Todas minhas e não minhas. Eu estava em todas e ao mesmo tempo não estava.
 Estava grudado no teto observando e não me achando nem um pouco louco. Sentindo-me adequado dentro de cada um de meus corpos que eram e não eram. As pessoas me olhavam com seus múltiplos corpos sorrindo e gratificadas pelos toques que nos dávamos, gentis ou argutos, que colocavam detalhes no olhar e na postura, enquanto meu corpo no teto engordava sem engordar com tudo isso.
            Tentei chamar Astréia quando passou por mim vestida de enfermeira, mas ela nem me olhou. Conversava muito compenetrada com um cara que só podia ser médico, mas que eu conhecia da praia e não podia reconhecê-lo agora. Nunca visitara minha namorada na faculdade de Enfermagem que cursava e o Otto, enquanto a gente surfava juntos, me disse que era professor dela e está tudo se misturando e se desmisturando.
            Sei que não estou louco porque lembro que meu nome é Flávio e estudo Direito, adoro surfar. Mês passado minha irmã casou e tive que usar o traje de gala que achava ridículo, no entanto acabei gostando tanto por causa dos elogios que recebi e me senti realmente um gentil-homem a ponto de vir com ele. Ou será que ainda irei a um baile de máscaras?
            Nesse momento, lá embaixo, naquele meu eu múltiplo, surgiu mais um corpo e estava vestido de cozinheiro fazendo as mesmas panquecas deliciosas que faço me sentindo como um mestre cuca. Minha mãe me deu um chapéu de chef igual aquele que usa e fico um barato com ele. Sinto que um pedaço de mim gosta mesmo de cozinhar e me prometo fazer um curso para aprender mais de alhos e bugalhos.
            E de repente tudo se encaixou e subi um pouco além do teto ficando completamente à vontade no grande céu, onde moram os deuses que me acenam em reconhecimento e sinto que sou um deles embora não entenda por que.
            Encaixou-se porque sou um pouco de tudo aquilo lá embaixo e estou observando que Sou num momento-espaço diferente para cada um. Uma bela ninfa se aproxima com uma cornucópia transbordando bênçãos e entendo que está certo que eu receba este prêmio já que pude ver este baile de máscaras sem me revoltar e nem enlouquecer, como já fizeram muitos que brigaram por uma identidade única e irreal.
            Sou múltiplo e sou total e as moedas da cornucópia me enriquecem com minhas incontáveis faces, todas verdadeiras porque por trás delas afinal sou Eu que estou inteiro. Minha inteireza subjacente de minha multiplicação, matemática que não é comprovável, mas que bate no ritmo de meu coração humano.
            Desço do espaço sabendo que Mercúrio deve estar rindo num canto ao me ver com a caneta na mão, pronto a contar esta história nos sites literários que participo e já sinto minha identidade escritor brotando, primeiro na ponta dos dedos já meio quadrados de bater nas teclas e fico imensamente feliz. Agrego meu mais um e procuro minha doce namorada Astréia, achando que tem o nome mais perfeito de todos e ainda bem que não é uma constelação do céu da noite, mas é uma constelação de carne e osso que posso beijar.




                                                                                              Vana Comissoli

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