domingo, 5 de junho de 2011

MOÇAMBIQUE A PIQUE


                                                                                              “Nem isto guerra nenhuma não é.
                                                                                                                       Isto é alguma coisa que não tem nome.”
                                                                                                                                             - Mia Couto –

                Uma atrás da outra as tribos se destribam, vilarejozinhos que já eram desde os tempos dos colonizadores. Neste tempo ser preto em terra de preto se tornara estrangeirismo, embora se grandes de bolso virassem quase brancos assentados ao lado deles.
            Ficava no esquecido o tempo em que os chefes se preocupavam com os tribais, muito mais os desvalidos, como agora quase todos eram desvalidos mais valia se valer e não se preocupar fora de si mesmo.
            Foi triste estar a andejo no berço de nascimento como menino nascido torto que se mata para não sofrer. Sofrer só há, jeito outro não tinha, então se vai andando terra sobre terra olhando de mau olhado estradas que se cortam, tanto de trajeto quanto de tiro. Se os cruzantes são irmãos já não se sabe mais, andarilhos todos de sacolejo e saco andante, a pele segurando os ossos para não se espalharem no chão. Se a peleja der tiro distraído acertando perna ou braço que encompridou para traz, há que se deixar o osso órfão e seguir carregando o que sobrou.
            Não havia modo de se querer ficar na casinha de muitas vidas antes da sua, cheia de marcas debruçadas no tempo espiando para ver se os moços seguiam a trilha marcada pelo compasso dos que já foram para o mundo dos orixás que aqui não há, mas em algum lugar deve ter.
            A cortina das lágrimas não se fechou impedindo adeus e nem se foi de costas, assim anda espírito que não sabe olhar para frente na adivinhação do que virá. Antonino, de nome branco, não o sabia também, talvez se continuasse Mwangaza teria mais tino. Enterrara este chamado junto ao último pé de milho que se finou torrado pelo o sol, que cor não tinha na sombra da fumaça das queimadas vestidas de soldado nem se sabe de que exército, uma vez tantos e muitos.
            Estradas foram tantas que de tantas já esquecera até o dia que achando tudo igual lhe pareceu diferente. Talvez o cheiro do ar, as cores... as falas que nem sempre entendia. Já pensara que terra de negros nascidos todos iguais eram, embora as histórias que  contavam as bocas antigas dissessem que não era assim e haviam de sobejo, muitos de diferentes terras todas negras, mas sempre diferentes na negritude da cor. Que no negro se guardam muitos negros e muitos jeitos de ser cor, mas cor não sendo.
            O caminhar já fora tão largo que se perdera do rio que lhe conhecia. O sol era aquele mesmo que chorara cinzas nos dias espaçosos de guerra, mas tinha uma olhada diferente, meio arrevesado como se ali ele não fosse de seu conhecimento.
            Nem sabia bem como atravessara tantos sítios já que a fome punha fraqueza nas pernas e o estômago ao contrário, desiludira de comer e só pouco, do tamanho de criança recém nascida era o que aguentava sem revoltar-se. Se acostumara. Tudo que se enfia no colar dos dias acostumado vai ficando, igual cachorro sem casa: vai chegando e vai ficando quase sem ir atrás de cheiro algum. Todos os cheiros se acostumaram ao focinho, novidade nenhuma que o faça levantar existe na terra batida e vermelhenta não se sabe do quê. Pelo menos assim lhe parecia ao ver tanto cão acoitado nas patas sem vontade nenhuma, os ossos querendo furar a pele que, de teimosa, não deixava.
            Agora estava ali sentindo esses bafios que entravam estranhos nariz a dentro. Se chegou na coragem e perguntou que terra final era aquela e de que lado do rio ficava. O respondedor estava com jeito de ter osso, pele e carnes por dentro talvez por isso tenha enviesado os olhos e levantado as mão como quem diz: Me sai cada doido das estradas de chegada e só eu tem para paciência tão grande de responde de novo e de novo que mudaram de terra e essa Moçambique já não é.
            Antonino foi levado pelo gesto a ir atrás de cidadão com facilidade de achego no peito e sentou-se bem feliz quando viu que era uma gamela de sopa que lhe estendia o respondedor sem trabalho algum de dar resposta. Tem coisas que se entende assim, sem fala, está no distante do pensamento a resposta e ela vai subindo, vai subindo até que se vê que de tudo já se sabia.
            Só escutou, de barriga aguentada da sopa, que seguindo em frente em algum lugar chegaria. Tem chegada um coisa tão sem jeito de gente? Nem sabia mais, há tempos esquecera que raça de bicho era, o dos humanos não devia ser uma vez escorraçado de todos os lugares. Obediência se aprende no ligeiro da ordem que se desobedecida pode custar perna, ou braço, quem sabe lá até a capacidade de ficar firme nesta vida sem Deus.
            Foi se indo até ver que a estrada tinham muitos que iam para o tal lugar que não chegava nunca, encompridado se encompridando. Desta vez nem reclamou, ou só clamou aos céus um baixar de vistas sobre ele, estava indo de bom grado por que de tempos em tempos, alguém com aquele sinal de feliz na testa esticava gamela de sopa. Pensava entre seus miolos que eram muito bons dando este manjar tão caro e raro, já vira muita faca e até facão ser arvorado à luta e bater no pescoço do de mãos estendidas num castigo bem certo por pedir o que não se deve.
            Fosse lá onde fosse este lugar na certa era dos bons, haveria trabalho pela troca da gamela cheia o que de certo era um salário muito bem assalariado para tempos tão malignos. E continuou indo até a lusa se derreter no mar e o sol de lá nascer para provar a todos que ele não morria como os miúdos apavorados ou famintos, que é tudo a mesma coisa e da mesma fonte. O pavor vem da fome e a fome dá um pavor que se desapavora depois do costume imposto.
            Nas pernas cansadas do cansaço, nos braços exaurido de abraços, a mente que pensa o despensado, este sul não chega nunca. Nem sabe se chegar é o destino, no Ori nada estava assim planejado. Parece que nesses tempos de guerra não há destino escrito, tudo está por se escrever através dos passos descompassados e do sul que não se sabe onde fica. Sendo o norte o melhor carreiro da vida desde tempos antanho, na fala dos velhos que não se achegam mais para repartir sabedoria acrescentada pela própria caminhada reescrita de jeitos perdidos, nos tiros que acertam corpos já caídos.
            Aqui as carnes começam a engordar e mulheres de beleza que fazem sonhar aconchego, restos da idéia de família, delícias esquecidas dentro do esquecimento que se quer ter, mas ressuscitam, de tão escondidos não estavam tanto. Os perfumes que balançam em redes nas nuvens balançando no céu que é azul de tão azul que sim, são do sul.
            Tu existirás, Esperança? Tua saia de flores e folhas de novo me dará sombra?
            Parece que a boca reaprendeu a sorrir, os pés a quase correr e os braços a se levantar em direção ao Ori que se faz ao caminhar. O rugir das grandes águas começam a falar de longe que de tão longe demorou a chegar, mas já despertam o nariz para cheiros cheios de peixe bons de comer, nos barcos a balançar. É barqueiro de pesca, caçador do mar, seus instintos agora sabem para onde ir, onde chegar que a chegada afinal despontou.

            As favelas isoladas, pelo povo sulista abandonadas se enfileiram junto aos parreirais de doces uvas que palpitam nos vinhos sul africanos. Os fugidos da guerra, sem lenço e sem documento esperam o dia em que o norte puder buscá-los. Caminhar e caminhar para casa outra vez, sentido contrário do encontro que não se encontra nunca.

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