quinta-feira, 4 de agosto de 2011

PRISIONEIRO

        


Nem abriu os olhos, entrou igual cego com seu cão guia. O olhar ficara em casa junto com a fala, escondidos embaixo da cama, apenas o focinho de fora, loucos de frio. Quando as palavras não são ouvidas ficam geladas e esquecem o caminho da garganta, as cordas vocais deixam de trinar. O olhar mendigo, exposto bifurcado ou enviesado se esquece de voltar.
            Sem entradas lógicas a mente passeia por onde quer, chega no coração onde toca o violino retesado, sem afinação, as paradas cardíacas estacam o bongô da percussão porque susteve o respirar, de susto que levou. As pontes de safena explodem e não se pode chegar ao outro lado do rio, se olha a margem com saudade ou melancolia, não é possível tocá-la.
            Era como um restolho de guerra, depois de muitos anos o guerreiro cansa, por isso a fala e o olhar deixaram de fazer falta, de toda a maneira as estradas estariam minadas e não poderia caminhar por elas, talvez encontrar uma casa com fumaça saindo pela chaminé e uma sopa quente fumegando no tripé sobre o fogo da lareira.
            Quando o capturaram não fez resistência de nenhuma espécie, até por que não tinha, raspara o tacho. Tentaram fazê-lo confessar as loucuras que tinha praticado, as farpas ferozes que teria dirigido aos seus protetores, ilações, ablações. Nada, nenhuma explicação. Qualquer tentativa que fizesse nesse sentido magoaria e enfiariam sua cabeça no balde cheio de comprimidos, sufocaria e alguns acabariam descendo goela abaixo carregando um sono de mea culpa. Para que? Não faria sentido qualquer coisa que dissesse, no fundo nem ele sabia a razão dos acontecimentos.
            Todos os dias a tortura se renovava em gestos nobres, palavras de fartas curvas, às vezes até sorria. É prazeroso escovar os dentes quando se acorda e se sentia limpo por isso.
            Obstinação, dizia o mais calmo. Teimosia, ralhava o irritado. Surto irreversível, vaticinava quem precisava desviar a atenção.
            Os dias escorriam nas páginas dos livros, afinal encontrara tempo para ler, como ansiara por isso. Traziam comida, resolviam a troca da roupa de cama, seu único trabalho era engolir e negar-se. Negar-se era pórtico, lápide. Visualizava: Negou-se a viver até o fim. Foi um herói. Seria reconhecido na posteridade, assim como nos filhos com seu sangue maldito que talvez tenha tido. Vê apenas rostos que parecia ter conhecido, preferiu esquecer e ficaram lá borrados e sorridentes.
            Algum dia teriam que soltá-lo, já estaria assassinado, fingiria que não, que estava vivo e presente mais do que nunca.
            As palavras se criavam como eram, gordas, entupidas de bem querer sufocado. Amar era absolutamente proibido. Talvez pulassem como bichinhos de pelúcia, ou irritadas e cinzentas. Ria fingindo que era de piada ao se dar conta que coisas tão diversas têm a mesma manifestação. De qualquer modo aconteciam na noite fechada da boca no travesseiro. Era perigoso libertá-las, deixá-las vagando de dia, voltariam os carcereiros a levá-las a ferro.
            O olhar continuava vago e oco, diziam que era filosófico, gênio pensativo sobre os porquês e
vasculhando o pensamento tão velho que perdera a graça: Ser ou não ser, eis a questão. Desperdício de tempo, não tinha mesmo resposta, desgaste de neurônios já esculhambados.
            Pensavam que estava vivo, os sinais vitais estavam todos na tela, o fato do coração bater arrítmico era pequena disfunção solucionável.
            Também passeava no jardim antes das 10 da manhã, era a boa hora. Esperavam que fizesse isso e sentasse no banco carunchado para ler o jornal com as notícias todas desatualizadas para ele. Também comia pipocas, as doces que gostava mais, sempre lhe sorriam então, como se fosse engraçadinho. Não era nem um pouco, era só lambuzo que se permitia, mesmo que alguma coisa pingasse na gravata que não tirava nunca.
            Se tinha certeza de não ser observado, brincava de árvore e deixava os pássaros pousarem sem alarde. Soltava pipas, normalmente de cor azul, papel de seda, ainda, só para se confundirem com o céu e ninguém se chocar.
            Tiraram-lhe o café, o deixava excitado, era a informação. Com o que? Gostaria de saber e ria à socapa da gente estúpida que inventava todas as regras para ele seguir. Não davam folga nem quando ouvia música, depressivas não, faz mal e ele adorava soul. Continuavam insistindo que contasse suas coisas secretas, as demoníacas. Curvava-se sobre si mesmo como se assim pudesse segurar qualquer ai fugidio. Quase reagiu quando tiraram o sal. Assim não dá! Essa tortura não aguento! Conseguiu resistir e se fortificou.
            Compraram chinelos, os seus estavam cambaios e esgarçados, era tão bom os pés espiarem dentro deles, agora nem isso. Os novos eram bonitos e macios, não lhe caiam bem. Ficava como uma borboleta presa pelo alfinete. Beleza que só se vê, mas não voa.
            Dia após dia, a mesma história, levanta, vê se dá bom dia, come, está quentinho, olha, vai derramar, cuidado, a escada, é da escada que estou falando, dorme que faz bem, olha pela janela, dia tão bonito, preciso matar a mosca não posso deixá-la circulando sobre ti, hora do banho, vem um pijama limpinho. Que foi? Não gostasse? Como não gostasse?
            Já completava 2 anos a tortura. Estava bem na hora de terminar. Não tinha mais granadas, esgotar todas na última batalha, não sobrou nem uma bala na garrucha, até a faca perdera o fio, só restava esta resistência à la Gandhi. Boba, por sinal, deixaram de dar bola, isso é assim mesmo. Irritou-se completamente. Pela última vez tirou os papéis da gaveta e olhou sua assinatura nos documentos de aposentadoria, sua sentença mortal. Abriu a janela, ainda bem que ventava muito e deixou as asas brancas voarem atém se depositarem no jardim emporcalhando tudo.
            Será que não teria mesmo nenhuma fibra? Estava de enjoado da “cadeira do papai” afinal era bisavô já. Enjoado de comida insossa e do coração que teimava em dar uns pulos deixando a todos enlouquecidos de medo. Será? Até sua próstata tinham roubado. Arre!
            Era cedo ainda, a empregada se movimentava de mentira na cozinha, certa que ele cochilava novelas na TV. Fez uma bela fogueira dentro da bacia de porcelana e jogou os chinelos. Pegou aquela barbaridade de caixas de remédio, e completou o serviço. Deu um cheiro de horror, mas a empregada cantava Bruno e Marrone, só sentia cheiro do namorado.
            Abriu o armário, queria estar pronto para que ninguém viesse comentar que ia embora mal vestido e emporcalhado, isso é coisa de velho. Tinham deixado o terno de riscas limpo e arrumado no último cabide, os sapatos bem lustrados sob ele. Será que nem isso? Quantas vezes dissera que não queria ser enterrado de sapatos? Coisa mais feia os ossos ensapatados depois de um tempo!Colocou o conjunto em cima da cama, não esquecera a camisa cor-de-rosa que escondera, se não fosse isso teriam jogado fora. Tão fora de moda!
            Tomou um longo banho, talvez a água tirasse esse cheiro de antiguidade que gruda mais que goma arábica. Isso não existe mais, vô, é cola Polar agora. Riu bem alto e se esfregou. Depois esticou os cabelos com uma meleca qualquer que encontrou no armário do banheiro. Bem que podia passar uma graxa de sapatos, mas até que todo branco estava bem, combinava com as rugas em torno dos olhos. Fez de conta que eram todas rugas de tanto rir. A loção deu um aroma de limão siciliano de que gostava muito.
            Saiu pé ante pé, só o gato foi com ele até a porta. Gato é assim mesmo, se a gente não se importa com eles logo se esquecem e vão rabear em outro vivente, coisa que não era mais.
            Fechou daquele jeito que aprendera escapando do controle da mãe, roda a maçaneta e só larga quando está pronta para se encaixar em trava. Riu de novo, não tinha esquecido, percebia agora e estava se divertindo como há muito tempo não sabia mais.
            Foi um Deus nos acuda quando o telefone tocou e uma voz faniquitosa avisou que “seu” Jaime tinha tido um ataque cardíaco no rendezvous da Rita Bolotuda, maior vexame.
            Esticado, de sapatos e camisa cor-de-rosa as mãos pousadas em cruz no peito parecia o esperado, só o neto ficou muito intrigado por que aquele sorriso nunca tinha visto no bisa. Estava bonito e no fundo do sem saber desejou estar assim um dia.

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